02/06/2021 11h00
Foto: Arquivo pessoal

Por 14 anos Fernandinha Fernandez, 34, só foi conhecida por causa dos filmes adultos que estrelava. E “estrelar” é o verbo correto.Quem conhece ou acompanha o mundo dos filmes eróticos no país sabe que existe um “antes” e um “depois” de Fernandinha, tal a, digamos, intensidade de suas performances.

Ela começou na TV como “parceira” de Vivi Fernandez, como uma das Mallandrinhas —assistentes de Sergio Mallandro.

Bonita, sexy, logo foi convidada para entrar no mundo erótico e chegou a gravar fora do país. Vivi também, aliás.

“No Brasil ser atriz de filme adulto é sinônimo de ser prostituta. Lá fora, não. Em outros países te tratam com respeito”, afirma Fernandinha, que decidiu se aposentar do pornô.

Por exemplo: Clayton Nunes, CEO da Brasileirinhas, onde ela gravou 17 filmes, lamenta sua “aposentadoria”.

“Ela ainda é uma das 15 atrizes mais procuradas diariamente no nosso site. Gente finíssima, extremamente profissional. Sempre foi e será uma das ‘tops’ do setor”, derrete-se o CEO.

Fernandinha agora investe em seu canal de YouTube, onde continua falando de sexo (como conselheira) e também abriu uma conta no OnlyFans, onde faz ensaios e vídeos sensuais. Mas, sexo explícito, não mais. Ela diz que cansou.

A maior frente dela, no entanto, é o novo canal que tem na Twitch (https://www.twitch.tv/fernandinhafernandez), onde fala e joga ‘games’ com fãs.

“Eu falo que sou um moleque em corpo de menina, porque sempre AMEI videogames’, diz na entrevista exclusiva publicada logo abaixo.

Articulada, inteligente, sagaz, Fernandinha afirma que sabe que seu caminho não será fácil e que o maior obstáculo que vai enfrentar se chama “preconceito”.

Ela já perdeu oportunidades de trabalho e chegou a ser expulsa de uma república de garotas apenas porque as outras mulheres descobriram que ela era atriz. Se sentiram ameaçadas e enciumadas. “Fui convidada a me retirar”, afirma.

Leia agora a entrevista que esta coluna fez com a “gamer” e modelo Fernandinha Fernandez:

O começo no pornô

Comecei 13 anos atrás pela Brasileirinhas. Fiz uma cena e eles gostaram bastante e acabaram me convidando para outros trabalhos. Eu topei.

Depois veio a fama na área e daí surgiram convites de outras produtoras. Eu gravei fora do país, gravei na França, Espanha etc.

Não foram muitos filmes —perto do tanto que outras meninas gravam—, mas acho que foram bem marcantes.

Há dois anos abri o canal na XVideos. Mas, a quantidade de gente que começou a postar nesse site ficou muito grande. Por causa disso, como tem muito vídeo, o faturamento com o canal caiu muito e eu parei de postar. Chega.

Acho que as pessoas meio que viram no XVideos uma outra forma de ganhar um dinheirinho sem sair de casa. Acho legal, é democrático, mas por outro lado muita gente faz vídeos de qualquer jeito, iluminação ruim, enquadramento. E isso baixa a qualidade do conteúdo.

Por que parei? Porque o pornô já não me agrega mais nada. Dizer que estou com saco cheio seria uma expressão muito forte.

Mas, acho que já fiz tudo que tinha para fazer nessa área. Outra coisa: sem modéstia, eu sempre me considerei uma pessoa muito inteligente.

Com o pornô, não tenho dúvida, eu estagnei como humana. Passei mais de 10 anos sem produzir nada de relevante para mim mesma. Digo na questão pessoal: não evoluí, não estudei, não fui atrás de coisas que pudessem me melhorar como pessoa e como profissional. Me acomodei.

Depois de um tempo comecei a me sentir burra, acredita? Eu sempre fui muito ativa, sempre quis fazer coisas, e então percebi que o pornô me estacionou.

Quero que saibam quem eu sou

Meu sonho é trazer esse público dos filmes adultos para outras plataformas. Para que saibam quem eu sou de verdade.

Por isso abri outras frentes: quero falar sobre o que eu passei, sobre o sexo encenado, dar dicas etc. E isso eu faço no meu canal no YouTube

Outra coisa que me fez mudar foi o fato de perder muitas coisas com o pornô.

As pessoas não conseguem diferenciar. Acham que ser atriz pornô é uma vida de quem transa 24 horas por dia, todos os dias. Ok, entendo perfeitamente que fui eu quem causou isso, foram minhas decisões.

Mas, agora também foi minha decisão buscar outras coisas, o canal no YouTube, o canal na Twitch, onde falo de games.

Hein? Games?

É, eu sempre amei games! Aí eu conversei com meu namorado e a gente decidiu também investir nessa plataforma. Abrimos um canal na TwitchTV, que está crescendo bastante.

Eu uni o útil ao agradável: basicamente falo que sou um menino que nasceu num corpo de menina. Eu sempre gostei muito de jogar videogames. De todos os tipos.

Como surgiu essa moda de as pessoas fazerem ‘lives’, essa geração dos ‘gamers’, eu me senti apta.

Graças a Deus tenho um público muito fiel que também joga. Eu já tô monetizando, tá indo bem. Devargazinho, claro, mas tá.

Tô muito feliz com o resultado. Consigo falar mais com meus fãs, consigo ficar mais próxima deles, tem essa história de jogar junto com eles também. e eu jogo de tudo: RPG, jogos em primeira pessoa, de tiros. Se é game, eu gosto.

Transição

Tá sendo muito difícil essa transição, sabe? Muito mesmo. Você faz pornô e carrega essa pecha pela vida toda.

Eu sei que nunca vão deixar de lembrar isso e nem é possível, né? Mas acredito que tenho potencial para transformar em outras coisas. Quero que me reconheçam por outras coisas além disso (ser atriz). Por isso resolvi parar.

Não me satisfazia mais, eu não tinha mais vontade nenhuma de gravar. Passei um ano me ‘arrastando’, gravando uma vez a cada dois ou três meses, porque peguei ‘bode’. Quando se chega a esse ponto acho que o melhor é sair.

Preconceito e discriminação 24 horas

Sair desse mundo erótico e dos filmes é muito difícil, Feltrin. É um rótulo eterno. As pessoas só enxergam isso. Eu sofri muito preconceito. Você não imagina como é difícil uma pessoa como eu mudar de vida!!! E não por falta de vontade, mas porque outras pessoas tentam te impedir.

Já tentei fazer faculdade, tentei fazer cursos, tentei estudar para ser comissária de bordo e sempre tinha um obstáculo na minha frente para me barrar e não me deixar eu seguir em frente.

Por exemplo, fiz curso para ser comissária de bordo. Tenho muitos amigos pilotos e aeromoças. só que todos falaram para eu desistir. Que seria muito difícil, ou impossível, eu entrar nessa carreira.

Nenhuma companhia aérea quer ter nenhum tipo de vínculo a uma atriz (ou ator) que tenha feito pornô. Isso me arrasou.

Porque, poxa, o que eu vivi, o meu passado, não pode servir como base para minha vida inteira. Eu passei aquilo. Eu não SOU aquilo.

Expulsa de uma república

Já perdi trabalho, já perdi amigos, já fui até expulsa de uma república, acredita?!

Quando as meninas da república descobriram o que eu fazia, foram falar com o dono do imóvel. Ele veio me pedir para eu me retirar imediatamente de lá.

O dono até me revelou: disse que as (outras) mulheres estavam de complô, que estavam com ciúme dos namorados delas.

Ou seja, existe toda uma carga, um fardo que eu trago e que é muito pesado. Todos os dias eu preciso provar que eu sou capaz. Provar que sou um ser humano. Que sou uma batalhadora, uma TRABALHADORA.

E, no Brasil, é pior ainda, porque aqui ser atriz pornô é sinônimo de ser prostituta.

Quando gravei fora do país, me senti respeitada. No Brasil, não. As pessoas não aceitam que por trás de tudo aquilo existe uma pessoa, uma humana, que tem sonhos, que tem vontades, que tem desejo de progredir. Não quero ser taxada de atriz pornô para sempre.

Aqui no país as pessoas dizem que lutam contra os preconceitos, mas eu vejo que eles só fazem aumentar. Vejo, não. Sinto isso na minha pele, todos os dias.

Ignorância

A maioria das pessoas imediatamente acha: ‘Ah, se ela é atriz pornô, então é burra’.

Não, senhores! Qualquer setor da economia ou da sociedade existem pessoas mais ou menos aquinhoadas intelectualmente.

Agora, no Brasil, falou que é atriz pornô é porque a pessoa é uma besta. Não tem inteligência para fazer outra coisa. Só sabe usar o corpo.

Não concordo.

Se quer saber, o que vivi no pornô me deu base e me deu voz para eu me levantar agora contra todo esse preconceito.

Quero, quem sabe, no futuro, ajudar a defender outras atrizes e atores que queiram sair dessa área. Não sei como ainda, é uma ideia.

A sociedade precisa parar com essa discriminação: ‘Ah, você foi atriz pornô então não serve para nossa empresa’. Por quê? Vocês são mais humanos e capazes que eu? Até parece! Eu não sou inferior a ninguém.


Splash – UOL