Quais são as maiores plataformas de tecnologia do mundo em número de usuários? Facebook, Aadhaar, Youtube, Whatsapp…. Opa, Aadhaar? Sim, esse é o nome da plataforma de governo digital da Índia, que tem hoje 1,19 bilhões de usuários.Diferente dos outros líderes que são big techs, o Aadhaar é uma plataforma tecnológica multipropropósito (já explico o que isso significa) construída por um governo com o objetivo de atender seus cidadãos digitalmente. Em hindu o termo significa “fundação”, em cima da qual tudo é construído.

Pois bem, o Brasil está finalmente no caminho de ter sua primeira plataforma tecnológica multipropósito. O nome dela atende por Pix. Essa plataforma vinha sendo construída pelo Banco Central desde 2013 e foi lançada nesta segunda-feira (5). Seu objetivo inicial é muito específico e útil: criar um novo sistema de pagamentos no Brasil.

Em outras palavras, aposentar os surreais DOCs e TEDs, que apesar de serem digitais, não funcionam durante a noite nem em fins de semana. Além de cobrarem preços elevados por cada transferência, em torno de R$ 7 (preço totalmente proibitivo para a maioria absoluta da população).

O Pix já é um sucesso. No primeiro dia de inscrições foram emitidas mais de 1 milhão de chaves da plataforma. Isso significa que pelo menos 200 mil pessoas procuraram se cadastrar (cada cliente pode cadastrar até 5 chaves).

Nem o Facebook, Instagram ou Whatsapp tiveram 200 mil cadastros no seu primeiro dia de uso. O número poderia ter sido bem maior. Não foi porque a infraestrutura de nuvem e de rede no país não aguentou o tranco. Sites de mais de um banco ficaram lentos ou saíram do ar por causa da demanda.

Esse é um ótimo problema de se ter. Mostra que o Banco Central construiu um serviço tecnológico que as pessoas querem realmente ter sem serem obrigadas a isso. Isso é raríssimo no setor público. Por exemplo, pesquisa do Agora e do Ideias Big Data já mostrou que apenas 12% dos brasileiros já baixaram um aplicativo governamental, número baixíssimo. Mais do que isso, o vergonhoso certificado digital, por exemplo, que custa cerca de R$ 200 por ano para ser emitido, depois de mais de 20 anos só é usado por cerca de 5 milhões de pessoas (menos de 2,5% da população), mesmo sendo obrigatório para alguns serviços.

O Pix é outra história. Ele é gratuito e permitirá que qualquer pessoa faça pagamentos também gratuitos a qualquer momento do dia. Para receber pagamentos basta passar o número do telefone, do email ou do CPF. Não precisa nem mais ficar passando nome, número de conta, agência e CPF; esses dados já vêm embutidos no serviço.

Ele tem tudo para ser a “fundação” de uma plataforma digital multipropósito no Brasil. Pode ajudar a bancarizar o gigantesco contigente de pessoas que ainda não têm conta bancária no país. E acabar com vexames como o aplicativo do auxílio emergencial da Caixa Econômica, que além de ineficiente continua operando às cegas, sem enxergar direito para quem está distribuindo os benefícios.

Prometi explicar por que usei a palavra “multipropósito”. Tal como o Aaadhaar na Índia, uma vez que o Pix alcance uma grande base de usuários, poderá expandir seu uso para múltiplos serviços. Por exemplo, poderá ser usado como identidade digital, tanto no setor privado quanto no público. Para assinar documentos, para matricular os filhos na escola ou se cadastrar em um hospital público. Os médicos poderão utilizá-lo para escrever receitas pela internet, e assim por diante. E muitos modelos de negócio, de publicidade e de entretenimento poderão surgir por causa dele, porque facilita enormemente enviar mesmo pagamentos ínfimos (R$ 1, R$ 0,01) sem custo.

Vale lembrar que em 2008 somente 20% da população adulta na Índia tinha conta em banco. Em 2018 esse número era de 80%. 500 milhões de pessoas foram bancarizadas por causa do Aadhaar e deixaram de ser invisíveis.

No Brasil o Pix pode ajudar a mudar completamente, e para melhor, a infraestrutura digital do país. O Banco Central mirou no que viu e acertou em muito mais. É tecnologia do jeito que deve ser, que concretiza as palavras de Gilberto Gil: “o povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe”.

RONALDO LEMOS / FOLHA DE SÃO PAULO